Cidadania americana em jogo: O que a Suprema Corte deve decidir sobre a nova regra de Trump?
- Barcellos Law
- 4 days ago
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A Suprema Corte provavelmente declarará inconstitucional a ordem executiva assinada recentemente pelo presidente Trump, que redefine a interpretação da frase "sujeitos à sua jurisdição" na 14ª emenda e altera o princÃpio do jus solis estabelecido há mais de um século.
A ordem executiva1 estabelece que a cidadania americana não será concedida automaticamente a pessoas nascidas nos Estados Unidos se: "(1) a mãe estiver presente ilegalmente no paÃs e o pai não for cidadão americano ou residente permanente legal no momento do nascimento; ou (2) a mãe estiver nos Estados Unidos legalmente, mas de forma temporária, e o pai não possuir cidadania americana ou residência permanente." Em outras palavras, apenas os filhos de pais cidadãos ou residentes permanentes seriam reconhecidos como americanos, mesmo que nascidos em solo americano.
No entanto, a Constituição, a história legislativa e precedentes judiciais deixam claro que os nascidos nos Estados Unidos, inclusive filhos de imigrantes ilegais ou com vistos temporários, têm direito à cidadania americana.
A 14ª EC2 declara que "Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãs dos Estados Unidos e do Estado em que residem." Essa disposição, conhecida como "Citizenship Clause", estabelece o "jus solis", ou seja, o de que a pessoa adquire a cidadania do local de nascimento. (grifos nossos)
De acordo com a definição do Black's Law Dictionary3 e o entendimento predominante da doutrina e da jurisprudência, estar sujeito à jurisdição americana implica estar sujeito às leis e à autoridade do governo dos Estados Unidos.
Com efeito, praticamente todas as pessoas presentes no território americano estão sujeitas à jurisdição americana, salvo rarÃssimas exceções, como os filhos de diplomatas estrangeiros a serviço nos Estados Unidos - que gozam da imunidade diplomática -, os filhos de militares inimigos - que gozam da imunidade do combatente - e os membros de tribos indÃgenas soberanas, cuja condição de soberania os exclui da jurisdição americana. De fato, esses grupos possuem imunidades ou estatutos jurÃdicos especiais que os afastam do alcance dessa jurisdição.4
Há mais de um século de precedente neste sentido. No caso United States vs. Wong Kim Ark (1898), a Suprema Corte reforçou o princÃpio do jus solis ao determinar que Wong Kim Ark, nascido em São Francisco e filho de pais chineses residentes legais nos Estados Unidos, era cidadão americano por nascimento. Essa decisão consolidou o entendimento de que, excetuando-se casos muito especÃficos, todos nascidos em solo americano estão sujeitos à jurisdição do paÃs e, portanto, têm direito à cidadania.
Embora a Suprema Corte nunca tenha decidido especificamente sobre a cidadania de filhos de imigrantes ilegais, esses indivÃduos estão claramente sujeitos à jurisdição americana. Afinal, só são considerados ilegais por, necessariamente, estarem sujeitos à s leis e à autoridade do paÃs.Â
Ademais, em Plyler v. Doe (1982)5, a Suprema Corte decidiu que a Cláusula de Proteção Igualitária (Equal Protection Clause) da 14ª emenda exigia que o estado do Texas fornecesse educação pública para crianças de imigrantes ilegais. Todos os nove juÃzes concordaram que "não é possÃvel fazer uma distinção plausÃvel, em relação à 'jurisdição' da 14ª Emenda, entre estrangeiros residentes cuja entrada nos Estados Unidos foi legal e aqueles cuja entrada foi ilegal."
Defensores da tese de que a alteração do entendimento da frase "sujeitos à jurisdição" pode ser feita por ordem executiva geralmente argumentam que os membros do 39th Congresso, responsáveis pela criação da 14ª emenda, não tinham a intenção de estender o direito à cidadania para filhos de imigrantes ilegais, uma vez que, na época, o Congresso ainda não regulava a imigração.
Contudo, nada no texto ou na história sugere que os redatores da 14ª emenda pretendiam fazer uma distinção entre diferentes categorias de estrangeiros. Pelo contrário, a Citizenship Clause alcança todos que estão sujeitos à jurisdição dos Estados Unidos e suas leis, dentro do território americano, independentemente de raça ou origem.
Por ser uma previsão expressa e fundamental da Constituição, eventual mudança da 14ª emenda só pode ser feita por emenda constitucional aprovada pelo Congresso e ratificada pelos Estados -- jamais por ordem executiva. Daà a inconstitucionalidade da ordem executiva.Â
De toda forma, é importante notar que a ordem assinada pelo presidente Trump não impacta apenas estrangeiros ilegalmente presentes no paÃs, mas também visitantes temporários - estes sim abrangidos expressamente na decisão do caso Wong Kim Ark.
Considerando que a maioria dos juÃzes da Suprema Corte adota uma visão originalista da Constituição, espera-se que a análise leve em conta tanto o texto constitucional quanto as intenções dos legisladores quando aprovaram a 14ª emenda. O princÃpio do stare decisis (respeito a precedentes) e a tradição do jus solis na common law inglesa também sustentam a inconstitucionalidade dessa ordem executiva.
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3 E.g., Black's Law Dictionary defines " jurisdiction" as "[a] government's general power to exercise authority."
4 HO, James C. Defining "American": Birthright Citizenship and the Original Understanding of the 14th Amendment. The Green Bag, v. 9, n. 4, p. 367-375, verão 2006. DisponÃvel em: https://www.gibsondunn.com/wp-content/uploads/documents/publications/Ho-DefiningAmerican.pdf. Acesso em: 22 jan. 2025.